2 de jan. de 2012

Cega Obsessão

Môjû. Japão, 1969, 86 minutos, thriller. Diretor: Yasuzo Masumura.
Da Síndrome de Estocolmo à loucura - o filme percorre excelentemente esse percurso.

Não fosse o Pedro, colega com quem divido a casa, ter me falado a respeito desse filme e insistido para que eu o visse, eu decerto teria deixado passar uma produção japonesa terror psicológico superior a muitas das produções recentes. Antes de fazer engrenar a resenha, aproveito para agradecê-lo por me ter feito conhecer essa produção do final da década de 1960, a qual aborda a vida de um artista cego que vive com a mãe, que um dia ajuda-o a seqüestrar uma moça a fim de que ela se torne modelo para uma das esculturas do rapaz.

Aki é uma modelo famosa, cujo corpo serve de material para a obra de um escultor que a cultua. Michio, um jovem cego, freqüenta o museu de artes no qual as esculturas do outro estão expostas e admira ininterruptamente as formas de Aki, tocando-as na estátua, acariciando-as e, assim, passando a nutrir um sentimento de vontade pela garota, a quem um dia consegue capturar, fingindo-se de massagista. Leva-a para a sua casa e suas ações são acolhidas pela mãe, que consente com o seqüestro e ajuda-o com a moça, mantendo-a presa pelo tempo em que ele deverá esculpi-la.

 A gradual degradação dos personagem os une no desejo de terem um ao outro com violência.

É evidente que duas das maiores preocupações do roteiro é caracterizar como positivo o jovem escultor e, ao mesmo tempo, mostrar o desespero da moça em relação à situação na qual se encontra. É necessário que nos deparemos com essas duas situações para que, com o passar da história, não a achemos incoerente. A obsessão do rapaz pela moça é mostrado mais como amor distorcido do que como fonte de perigo - o filme nos força a pensar que a atitude dele seria a única para que ele pudesse, afinal, tê-la como objeto para produção artística era tudo que ele sempre quis; assim, os fins justificam os meios e o seqüestro não se nos mostra tão cruel quanto parece. Por outro lado - o lado dela -, há o completo desespero de não saber no que aquilo resultará e se ela será mesmo liberta após o fim daquele processo que, sob a perspectiva dela, é tortura. A personagem tem uma dúvida que não existe para o espectador: enquanto ela teme ficar ali para sempre presa, nós sabemos que ele cumprirá a sua promessa, já que, como disse, o roteiro se ocupou em nos mostrar que o rapaz, apesar de sua atitude extremista, é dotado de boas intenções, logo, não haveria por que não deixá-la ir.

Cabe ressaltar que as inúmeras tentativas de fuga de Aki, a modelo, são contrapostas semanticamente pela arte do ambiente no qual ela está. Soam bastante cênicas as cenas nas quais Aki corre, em desespero, de Michio - os dois percorrem o imenso espaço do ateliê dele, pulando esculturas imensas, escalando corpos nus feitos de gesso, cercadas pela nudez das figuras ali esculpidas. Como se nota, nem mesmo a fuga dela parece tão negativa; vemo-la, às vezes, quase a divertir-se naquele parque escuro e amedrontador. Acerca dessa ambiência, vale também apontar a figura da mãe do rapaz, que se mostra perigosa e ferrenha tanto para a jovem quanto para o rapaz, já que ela traz consigo a imagem da opressão, quase numa abstração de sua própria figura - às vezes, parece que ela está em todos os lugares para vigiar e reprimir. Aliás, penso que a intérprete da mãe seja a atriz mais empenhada ali, sua participação é mesmo muito bem trabalhada e atriz não deixa a desejar. Dar o máximo de si não acontece o tempo todo com Eiji Funakoshi e Mako Midori, intérpretes de Michio e Aki, respectivamente, mas, inegavelmente, ambos fazem um bom trabalho.

 Próximo do final, já totalmente entregues à loucura.

O grande auge do roteiro não se encontra nos desencontros de Aki e Michio, mas sim no momento de comunhão entre os dois - ela, por fim, cede e se entrega a ele gradualmente a partir do momento em que decide fingir-se de apaixonada para poder fugir. A estratégia falha e a situação fica revertida - ele acaba mesmo entregue a ela. A famosa Síndrome de Estocolmo: a prisioneira que passa a amar o seqüestrador, escolhendo, no final, ficar ao seu lado a ter sua liberdade de volta. E verificamos que os dois, agora totalmente envolvidos um com outro - eles têm apenas um ao outro -, entregam a uma desumanização desenfreada, na qual a identificação com a figura do outro é fundamental. O clímax acontece pouco a pouco e o seu ápice é a extrema loucura, na qual as ações são desproporcionais às suas conseqüências e os personagens já cercados pelos seus desejos mais instintivos pela dor levam ao extremo o seu ato de amar.

Talvez seja a loucura dos personagens o elemento que dá ao filme o seu requinte, assim como a bela fotografia e o ambiente perturbador no qual estão inseridos. A perda da sanidade é o grande atrativo do filme e, no final, a perda do discernimento é o grande mote do enredo - desde a ação de seqüestrar até a escola de, no final, por prazer, mutilar-se pouco a pouco, entregues à dor. O filme retrata assombrosamente dois humanos que abrem mão de sua condição de seres racionais, para, racionalmente, trilhar caminhos diferentes daqueles que se espera que eles sigam. A direção de Yasuzo traz um ritmo lento, mas essencial à integração do espectador à história; destaque para os excelentes momentos de conflito entre Aki e Michio e também para a presença de Noriko Sengoku, a mãe. Creio que a melhor parte dessa composição cinematográfica, é o seu contexto histórico, já que a produção foi apresentada numa época em que o Japão estava fortemente relacionado ao drama da tensão sexual (lembremo-nos de que “O Império dos Sentidos” é da mesma década e percorre o porn aesthetics) enquanto paralelamente se via muitos filmes mais restritos à cultura do país, mostrando as artes marciais, por exemplo. A meu ver, é um grande filme que merece ser conferio. E, mais uma vez, agradeço ao Pedro por tê-lo me apresentado.

3 opiniões:

Júlio Pereira disse...

Se não fosse o Pedro, você nunca teria conhecido; se não fosse você, eu não teria conhecido. Valeu, Pedro. hahaha

Enfim, a sinopse me lembrou bastante também Mulher da Areia (desde o suspense psicológico até a relação entre um sequestrado e sequestradora), que é mais ou menos da mesma época (e é Japonês). Recomendo muitíssimo e, peço ainda, se puder, depois de ver, fazer a crítica pro blog. Valeu aí!

Kamila disse...

Que belíssimo texto para um filme que eu ainda não tinha assistido!!! Parabéns!!!

Luiz Santiago (Plano Crítico) disse...

Esse filme é maravilhoso. Gosto muito da forma como o Masumura abordou essa questão da Síndrome de Estocolmo. Que bom que você conheceu este filme! É uma obra e tanto!