12 de mar. de 2012

A Hora da Estrela

Brasil, 1985, 91minutos, drama. Diretora: Suzana Amaral.
Ainda que não seja uma adaptação efetiva de tudo que está presente no romance de Clarice Lispector, trata-se de uma das obras mais interessantes do cinema nacional.

Sempre que se comenta a respeito dos filmes que são produzidos no cinema nacional, à mente de quase todos vêm as produções mais recentes, que usualmente retratam a marginalização de um grupo social, principalmente voltadas à questão de crimes, violência, morte. De certo modo, há atualmente uma identidade muito forte do Brasil com temas policiais, os quais se podem verificar em títulos como Cidade de Deus e Tropa de Elite – o primeiro, em minha opinião, bastante interessante; o segundo de gosto duvidoso. No entanto, é válido buscar na memória e na história nacional de produções cinematográficas que abordavam uma temática diferente dessa que eu comentei acima e que trouxeram obras fílmicas importantes para o Brasil. Exemplifico com os títulos Central do Brasil, de 1998, e A Hora da Estrela, adaptado em 1985 da obra literária de Clarice Lispector, que publicou o romance em 1977.

Se comparadas as obras fílmica e literária, perceberemos que no filme falta muito da riqueza presente no livro. Se ignorarmos, porém, que o filme provém do livro, decerto nos perceberemos diante de uma obra bastante rica e intensa. Vale, antes de estabelecer grandes comparações – as quais eu não farei –, lembrar que cinema e literatura são artes cujos planos de expressão são diferentes; exatamente por isso não se pode esperar que tudo seja mostrado em um conforme é mostrado no outro. Assim, afirmo desde já que A Hora da Estrela é uma obra interessante, que nos traz uma excelente condução de história e que nos apresenta personagens bastante coerentes dentro da estrutura social da narrativa. A história de Macabéa, jovem nordestina de 19 anos, nos é contada a partir do momento em que ela consegue um emprego e arruma onde morar. Acompanhamos a partir de então a trajetória de uma moça que fala pouco, exatamente porque não sabe o que falar; age estranhamente porque não foi habituada ao convívio social e ao pensamento capaz de discernir o que lhe é bom e o que não é. Ao longo de uma hora e meia, vemos como essa moça lida com Glória, sua colega de trabalho, Olímpico, o seu namorado, e, ainda, com a sua própria vida.

 Quando sozinha, Macabea se entrega aos seus devaneios.

Talvez o grande acerto de Suzana Amaral tenha sido confinar Macabéa à sua própria pobreza. A personagem, bastante rica quando analisada, é tão pobre que causa no espectador uma sensação angustiante – sua pobreza não exclusivamente financeira: falta-lhe carinho, falta-lhe discernimento, também carinho e compreensão. Decerto modo, pode-se dizer que lhe falta pensamento crítico. Sua alienação é tão absurdamente grande – e tão magnificamente interpretada por Marcelia Cartaxo – que ela parece fadada a todas aquelas situações infelizes que lhe cercam. Dou destaque especial para a cena na qual Macabéa, sem qualquer distinção entre o que é higiênico e o que não é, faz xixi numa bacia enquanto come um frango; depois, sem acesso à água, não lava as mãos, limpa-as engorduradas na camisola, e ouve música. Nota-se também uma profunda crítica social em todas as cenas mostradas pela diretora e pode-se afirmar que o seu filme é não apenas artístico, mas também tem uma finalidade social marcante, assim como o romance clariceano. Para mim, o mais marcante qual à proposição de questionamento social é a apresentação da marginalização dentro da marginalização: percebe-se no quarto que Macabéa divide que todas as mulheres lá estão à margem da sociedade; ainda assim, Macabéa é vista por elas como alguém inferior, consciente ou inconscientemente, vêem-na como alguém mais distante socialmente do que elas.

Quanto aos aspectos artísticos da obra, penso que não posso desassociá-lo dos inúmeros caracteres simbolistas que existem nessa obra. É evidente ao espectador que olha que atenção as cenas que há uma simbologia bastante notável nelas. Destaco aqui duas delas: dois momentos nos quais Macabéa se olha em superfícies refletoras e quando ela se depara com a dicotomia alto-baixo. Nos momentos em que a personagem se olha, nunca a vemos – bem como ela mesma não se vê – regular e estável; a superfície que a reflete sempre a mostra distorcida, embaçada, nebulosa: uma evidente amostra de que a personagem é o seu reflexo, posto que o reflexo é a imagem em projeção daquilo que é posto diante de um espelho, por exemplo. A respeito da dicotomia que comentei, notamo-la muito explícita em duas cenas – quando Macabéa é levantada por Olímpico, que a gira, e quando a cartomante lhe diz que a vida é uma montanha-russa. No primeiro exemplo, Olímpico a coloca no alto e a gira, causando nela uma alegria bastante espontânea; Suzana Amaral inclusive nos concebe um momento muito interessante no qual ignora a objetiva e faz com que a câmera se torna subjetiva: vemos a cena por intermédio da visão de Macabéa, tal como ela, nós giramos no ar. Depois, próximo ao final do filme, a vidente lhe diz que ela subirá na vida ao conhecer um estrangeiro, o que de fato acontece: Macabéa, ao sair dali, é atropelada por um gringo – o choque do carro com o seu corpo a arremessa para o alto, lançando-a fortemente ao chão depois. Nesses dois momentos, percebemos a associação do “alto” com o “baixo” é não apenas literalmente, mas, sobretudo, metafórica. Na cena com Olímpico, ele a levanta (ela está, fisicamente no alto), demonstrando um gesto de carinho, para logo depois terminar o namoro com ela (colocando-a, em oposição metafórica à cena anterior, para baixo). A cartomante, por sua vez, refere-se exclusivamente às situações capazes de nos fazer felizes e tristes e Macabéa literalmente efetiva as palavras da vidente ao, num momento de espontânea felicidade – tal como na outra cena comentada –, ser levantada literalmente e derrubada. Percebe-se a simbologia da oposição entre alto-baixo, literal-metafórico, felicidade-tristeza.

É claro que o filme não sucede apenas pela delicadeza de Suzana Amaral ao filmar essa obra. O filme também é um conjunto de acertos por partes do atores, roteirista, produtores etc. Nunca, enquanto lia o romance, pude imaginar alguma atriz que tão perfeitamente adentrasse nas características de Macabéa e a trouxesse tão pungente para as telas; Glória, interpretada por Tâmara Taxman, foi excelentemente personificada, os seus gestos, a sua postura, é exatamente assim que se concebe a imagem da personagem enquanto lemos. Olímpico também é parecido com o que o ator José Dumont ofereceu: rude mesmo quando tenta ser dócil, ignorante supremo e ainda assim, em contraste à Macabéa, absurdamente orgulhoso para admitir que não sabe certas coisas. Não me restam dúvidas de que essa é uma obra nacional que merece destaque e que foi esquecida, como se não tivesse resistido à ação dos anos – o que se mostra muito incorreto, já que o filme continua extremamente vivo e, não fosse pelos problemas na remasterização, seria sinceramente atemporal. Para mim, merece indubitavelmente ser visto.

2 opiniões:

Júlio Pereira disse...

Olha que bacana: conheci a atriz principal e diretora do filme, há mais ou menos um mês. Inclusive, voltei da escola para casa no mesmo carro que ela (meu pai quem deu carona pra ela em Goiânia, e foi ele quem a trouxe). Teve um evento aqui homenageando as mulheres que fazem cinema, e o filme teve exibição, além da presença das duas. Infelizmente, por ser tarde, tive que voltar para casa, por ter aula no outro dia. Mas são ambas muito simpáticas e humildes - a diretora já com seus quase 100 anos!

Seu texto, no entanto, analisa muito bem as metáforas que aparentemente estão contidas na obra. O livro eu nunca li, mas meu professor de português (e primo) recomenda sempre. Uma pena mesmo que tenha sido esquecida. Na verdade, eu mesmo, até haver a divulgação desse evento, nem sabia do filme!

Quanto ao cinema nacional, acho o cenário atual dele diversificado. Aliás, filmes de favela pouco existem (isto é, em 2011/2012). O problema é que o público não tem acesso aos filmes mais independentes - e nem fazem questão de ir atrás. Eu procuro me manter sempre atualizado, indo em todos os festivais e tudo mais do cinema nacional. Esse ano mesmo, vai lançar o sensacional Eu Receberia as Piores Noticias dos Seus Lindos Lábios, mas deve ser esquecido por uma parcela grande do público. Mas sim, antigamente, tivemos muitas coisas diferentes. O Cinema Novo, que admiro tanto, é um bom exemplo de produção nacional intensa e admirável. Não por um acaso, era reconhecido em todo o mundo!

Enio Alann disse...

Pobre Macabea..
Era apenas uma sonhadora neste mundo tão mal e cruel..
ainda não sei pq vi este filme duas vezes..