22 de jul. de 2012

8 ½


Idem. Itália / França, 1963, 138 minutos, drama. Diretor: Federico Fellini.
Definitivamente se trata de uma obra espetacular visualmente, cujas cenas nos fascinam e nos perturbam ao mesmo tempo.

Meu conhecimento acerca das estéticas que alicerçam as obras italianas é bastante escasso, sobretudo no que diz respeito à filmografia de Fellini, diretor cujo nome é verdadeiramente destacável no cinema. Assim, penso que escrever esse texto será mais elogiar e admirar o trabalho realizado e o produto final – que é este filme – do que me atrever a dizer o que acho interessante ou desinteressante nessa obra, uma vez que não quero percorrer caminhos cujas bases eu desconheço. Gosto especialmente de uma característica acerca da produção desse filme – Fellini colou na câmera um aviso: “lembre-se: esta é uma comédia”.

A história de Guido Alselmi não é nada cômica, apesar de o diretor ter tentado lhe dar esse caráter. O filme “8 ½” (1963) é sobre um filme que não se realiza, justamente porque Guido Alselmi, o diretor da obra, não consegue concretizá-la – nem sequer começá-la, apesar de já haver atores contratados, produtores cobrando, repórteres demandando uma coletiva para imprensa. O grande problema de Guido é uma a ausência de criatividade, que não lhe permite produzir adequadamente e, não bastasse isso, há ainda os problemas com Carla, sua amante, e Luisa, sua esposa, parecendo que todos os seus relacionamentos entrarão em crise definitiva.

 Um dos delírios iniciais de Guido - ele flutua alto, antes de despencar na areia.

Ter assistido a esse filme agora me fez acreditar na existência de um lado muito positivo e outro muito negativo, que, ainda bem, não se anulam. Começarei pelo negativo, que ele é o mais importante – assisti ao musical “Nine” (2009), de Rob Marshall, estrelando Daniel Day-Lewis, antes de assistir essa produção de Fellini, que dá base para os personagens e para a história do filme musical de três anos atrás e também de uma peça de teatro, que, embora seja de onde “Nine”, o filme, verdadeiramente tenha vindo, não cabe para a discussão. Enquanto via o filme italiano, não conseguia parar de compará-lo ao filme estadunidense, procurando sempre as características em comum dos filmes, como a seqüência de eventos, o nome dos personagens, os dramas pessoais deles e até mesmo algumas cenas. O lado positivo é que eu assisti a esse filme agora, ainda que isso resultasse em comparações. Se eu tivesse assistido antes (considerando que vi “Nine” no ano de seu lançamento), eu decerto não conseguiria enxergar a grandiosidade “obscura” do filme de Fellini.

Marcelo Mastroianni e Anouk Aimée em personagens que seriam depois de Daniel Day-Lewis e Marion Cotillard.

E não o enxerguei grande devido às comparações, mas devido ao meu amadurecimento enquanto cinéfilo. E chamo-o de obscuro, porque não me sinto plenamente capaz de identificar o que há de fabuloso aqui, já que há tantos elementos que parecem exercer fascínio e, ao mesmo tempo, toda uma simplicidade presente, mas que sabidamente não existe: a obra, afinal, não é nem um pouco simples. Ela é, aliás, bastante complexa, havendo não apenas o plano mais superficial – a realidade dentro da trama, ou seja, aquilo que existe dentro da esfera de ação das personagens – como também um plano profundo e muito mais difícil de ser analisado, que é justamente a relação de Guido com o que não é real: seus sonhos, seus delírios, suas expectativas e, ainda, suas impressões, extremamente importantes. Acrescentando à obra ainda mais complexidade, há o fato de que ela é metalingüística: Fellini, o diretor de “8 ½”, fala sobre Guido, o diretor de uma obra sem nome, cuja criatividade se esvaiu. Pode bem ser verdade: por que Fellini, sem inspiração, não poderia escrever sobre como é estar sem inspiração? Não duvido que haja muito do próprio diretor aqui: o próprio título é uma alusão àquilo que ele já havia feito até então – dirigiu seis filmes, dois curtas-metragens e co-dirigiu (metade) uma obra, sendo esse filme de 1963 o seu oitavo filme e meio.

Fellini queria comédia, mas o resultado é bastante sombrio. Logo nas primeiras cenas vemos Guido numa batalha consigo mesmo: seus sonhos lhe perturbam o sono e ele se vê em situações incomuns. A escuridão do filme se dá não apenas pelo seu próprio roteiro, mas também pela fotografia, que maravilhosamente intercala o luminoso com o escuro, resultando, grosso modo e parca a comparação, numa obra bastante barroca, que mostra uma criatura não apenas em conflito consiga mesma, mas com tudo aquilo que a cerca. E vemos Guido assim: cada momento dele é um luta consigo e com o cenário, ele vestindo negro numa ambiente luminoso, ele vestindo branco num corredor escuro. O personagem é um desajuste e nenhum cenário lhe dá base para qualquer alegria. Acredito justamente que é a fotografia e a direção de arte que mais me agradaram: impossível não se fundir ao personagem conforme a narrativa transcorre, impossível não se sentir incomodado tanto quanto Guido, por motivos diferentes, talvez: ele pela sua própria situação e o espectador pela situação dele com tudo aquilo que circunvizinha sua agonia.

 Guido e Carla, sua mistress, cuja presença eventualmente também o oprime.

Penso que todo o universo que vemos é onírico, apesar de notadamente parecermos introduzidos à atual condição de Guido e, às vezes, às suas memórias. Fellini dá um caráter bastante opaco à sua obra e inevitavelmente vemo-la com a translucidez de um sonho. Acho, inclusive, que foi essa a sensação que eu senti após ter terminado de vê-la: parecia que eu mesmo tinha sonhado com tudo aquilo que aconteceu e que, na verdade, o próprio filme, tendo eu o visto como um sonho, nem sequer existe. Estética maravilhosa aqui apresentada, que cativa o espectador o tempo todo. Ainda que Marcelo Mastroianni faça um excelente trabalho, decerto não é sua interpretação a que mais me marcou, mas o seu desconforto em relação àquilo tudo. Seus diálogos com Luisa são perturbadores, também seus momentos com Claudia e, não por menos, os seus momentos com sua mãe ou até mesmo com Saraghina – aliás, fantástico esse momento, Fergie jamais conseguiria impressionar como a atriz desse filme.

Penso que assistir a esse filme, independentemente de gostar ou não, é necessário para sentir a estética de Fellini. Digo sentir, porque penso que seja esse o nosso primeiro contato com ela – somente depois de revisitar a obra, coisa que vou fazer, é que seremos capazes de compreendê-la com mais precisão. Gostando ou não da obra, penso que não seja possível negar que ela seja um grande espetáculo visual, inclusive mais colorido do que se o fosse mesmo.

7 opiniões:

O Narrador Subjectivo disse...

Nem quero ver o Nine! Afinal, este é dos meus filmes preferidos.

Unknown disse...

Um texto q faz jus ao filme. 8 1/2 é a obra máxima de Fellini. Que bom que gostou, pois não é um filme de fácil digestão. Parabéns.

Kamila disse...

Um clássico indiscutível. Pra mim, a grande obra prima de Fellini. Um filme de roteiro e execução impecáveis e que fala sobre a arte e o processo criativo de uma forma onírica que muito me atrai.

Parabéns pelo texto!

disse...

Gosto demais deste filme, sendo o meu favorito de Fellini, ao lado de A Doce Vida (não consigo escolher entre os dois!). A maneira como Fellini mostra o processo criativo e a falta de inspiração é magnífica e muito verdadeira.
Abraços!

Matheus Pannebecker disse...

Tentei ver anos atrás... E lembro que, na época, achei que eu era ainda muito novo para compreendê-lo. Um dia darei outra chance!

J. BRUNO disse...

Olá Luís, '8 1/2' não é o meu favorito de Fellini, gosto mais de 'Amarcord' e de 'A Doce Vida', no entanto este é um filme único, genial em todos os aspectos. Gostei muito de sua crítica, pois através de sua sinceridade você acabou abordando de uma forma maravilhosa a sensação de fascínio que o filme nos provoca por conta de sua complexidade...

Deia uma olhada depois na minha crítica dele: http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/2011/07/8-12.html

Júlio Pereira disse...

É, sem dúvidas, meu favorito do Fellini. E um dos seus filmes mais importantes, por dividir águas em sua filmografia. Depois dele, boa parte dos filmes do Fellini seguiram linhas parecidas. Há duas cenas que adoro, em especial: o sonho de Guido com as mulheres, e o final extremamente edificante. Quando ao Mastroianni, pra mim sua performance é impecável: emulando com perfeição os trejeitos do Fellini, consegue ainda imprimir um caráter neurótico e perturbado em seu personagem. O incômodo que você citou, inclusive, obviamente faz parte da atuação dele. Enfim, excelente texto, Luís!